Não conhecia o Pedro Nikolay, atropelado hoje
por um ônibus. Mas além de termos amigos em comum, sou uma pessoa consciente do
mundo onde vivo, e este fato me fez lembrar que, certa vez, presenciei uma discussão curiosa. Um carro atropelara
um ciclista e a "comunidade" do esporte argumentava que a vítima, na
verdade, não era um ciclista, e sim uma pessoa comum andando de bicicleta. Tal
distinção se dava em razão do pobre coitado não estar usando aquelas malhas
coloridas, uma sapatilha e um capacete.
Pedalo por esporte há cerca de 5 anos. Nunca fui ao famoso “pedal
da madrugada” que vitimou o Pedro, pois sempre achei perigoso. Não tenho esse
temperamento arrojado e competitivo que têm os atletas que frequentam este
treino, e além disso tenho pais, marido e 3 filhos, que precisam de mim
assim como preciso deles. Acho surrealista esse treino - o horário, a
quantidade de ciclistas, o risco a que se expõem. Penso que ali ninguém se leva
muito a sério.
Hoje, diante da chocante morte do Pedro, todos estão muito
emocionados, tristes, comovidos. Muitos sabem que poderiam estar no lugar dele.
Acho bonitas essas manifestações, luto no Facebook e tal, mas queria falar de
outro aspecto.
Como um contingente cada vez maior de cariocas, eu pedalo na Vista
Chinesa, na Mesa do Imperador, no Cristo, nas Paineiras. Lugares com menos
trânsito onde nós, ciclistas, nos sentimos meio reis. Gosto tanto do assunto
que em fevereiro do ano passado comprei uma bicicleta elétrica e desde então
ela se tornou meu meio de transporte principal. Moro na Gávea e com ela vou ao
Jardim Botânico, ao Leblon, a Ipanema, a Copacabana, ao Humaitá, a Botafogo. Às
vezes por ciclovia, às vezes pela rua, às vezes pela calçada. Nunca me
acidentei mas já estive perto disso.
O número de triatletas e ciclistas que treinam na madrugada é
ínfimo perto da quantidade de gente que escolheu pedalar para o trabalho, para
a escola, para suas atividades cotidianas. No entanto, precisou um triatleta
morrer no treino da madrugada, em plena Zona Sul, para diversas assessorias
esportivas mobilizarem rapidamente centenas de atletas e simpatizantes pelo
Facebook para uma manifestação.
Algumas
semanas atrás uma garota foi atropelada por um ônibus no
Leblon. Voltava de bicicleta da casa de uma amiga e morreu pedalando. Uma meia
dúzia de conhecidos fez uma pequena homenagem no local e a garota só foi
lembrada novamente pela mídia porque hoje o Pedro morreu, e ela ajuda a
engrossar a triste estatística.
Eu sei que nós, alunos de assessorias esportivas, somos uma
elite. Muitos pedalam bicicletas que custam o preço de um carro e nem pensam em
usar bicicletas como meio de transporte, pois para eles o ciclismo é uma
competição, uma cachaça, e só tem graça quando estão todos fantasiados,
com o Garmin a postos no guidon.
Eu
queria dizer pra essas pessoas que a bicicleta é muito mais do que isso. É o
prazer do vento no rosto, da exploração de montanhas íngremes, das descidas
esburacadas, do asfalto liso das estradas europeias, da alegria de cruzar as
ruas livremente rindo da irritação dos motoristas engarrafados. A bicicleta
merece, sim, respeito e - por que não - a admiração de todos. O ciclista é um
cara que escolheu outro caminho, fazendo muitas vezes um favor ao trânsito das
grandes cidades.
Ciclista não é apenas aquele ser de outro planeta que acorda às
5 da manhã pra pedalar. Ciclista sou eu, que uso minha bicicleta elétrica
para trabalhar. Ciclista é o rapaz da farmácia que pedala para fazer suas
entregas. Ciclista é o turista que pega uma bicicleta do Itaú para dar um
passeio. Ciclista era aquele homem que foi atropelado pelo Thor Batista.
Ciclista era o Pedro Nikolay.
Dito isto, vamos ao ônus do ciclista. Ele não é por definição
uma vítima do trânsito; muitas vezes é o culpado de um acidente. Vejo
verdadeiros absurdos em minhas andanças pela cidade, sendo ciclistas na
contra-mão o mais comum deles. Vejo ciclistas que não param no sinal vermelho.
Ciclistas que andam pelas calçadas (como eu mesma), na falta de uma ciclovia
segura. Ciclistas que andam no meio da pista e resolvem desviar de um
buraco jogando a bicicleta na frente dos carros, arriscando a sua vida e a dos
outros. Ciclistas que quase atropelam pedestres atravessando a rua. A lista de
imprudências é enorme e desanimadora.
Não pretendo tomar partido nesta situação, prefiro aguardar os
fatos. Queria apenas ampliar o significado da palavra ciclista e abranger todos
aqueles que eventualmente pedalam. Precisamos, sim, nos mobilizar para defender
mudanças. Motoristas – e não somente os de ônibus – precisam conhecer e
respeitar a legislação, ciclistas precisam entender como agir no trânsito, a
prefeitura precisa criar mais ciclovias, enfim. Muitas mudanças precisam ser
feitas para que ciclistas, motoristas e pedestres convivam em harmonia. A
bicicleta é muito mais do que um enorme prazer; é um meio de transporte
inteligente e sustentável, e nossas cidades precisam aceitar que ela veio para
ficar.
2 comentários:
Ótimo texto. Concordo plenamente com voce, Andrea, ciclistas são todas as pessoas que fazem uso da bicicleta; seja por hobby, seja pela falta de outro veículo para se locomover, seja por esporte. Todos merecem a atenção do Poder Público, indistintamente.
Ciclismo é a arte de andar de bicicleta. A definição (que também é minha) é do Aurélio. Isto posto, vale frisar que nem todo ciclista faz distinção entre quem pedala por lazer e quem o faz por esporte ou competitivamente.
Sobre a diferença nos desdobramentos após um e outro sinistro, o fato é que, de um modo geral, em ambos desportista e amador, o amor é enorme, mas a mobilização tende a ser algo mais natural para o primeiro grupo, cujo grau envolvimento com a arte é (também de um modo geral) maior. Não por acaso, quem primeiro diferenciou o ciclista desportista do amador foi a própria autora do texto.
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