sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012

EL CRUCE COLUMBIA 2012

Por anos, eu secretamente nutri um desejo de participar de uma dessas loucas aventuras de corridas extremas que se assistem na TV. Entretanto, imediatamente me deparava com o pensamento “quem no seu perfeito juízo faria isso?”. Então, no início de 2011, conversando com meu amigo Filipe Meireles, surgiu a chance de participar do El Cruce de Los Andes Columbia 2012, uma corrida de 3-dias consecutivos com mais de 100K de terreno de montanha da Patagônia entre Chile e Argentina. A edição deste ano incluia uma subida de 2.133 metros no vulcão Mocho-Choshuenco e uma corrida em torno do seu pico. Pronto, estávamos inscritos, Filipe, Fabrízio, Caúla, Roger e Ashbel. ¡Rumbo al Volcán! 

Consultamos nosso treinador Walter Tuche que aceitou o desafio de nos treinar. Após uma breve reunião com o grupo, WT nos trouxe a realidade apresentando as reais dificuldades que enfrentaríamos. Enquanto os meses passavam, eu gradualmente percebi o quanto tempo, esforço e dinheiro eu teria que dedicar a esta prova. As planilhas elaboradas pelo WT ficavam mais difíceis a cada semana. Exercícios específicos eram propostos pela assessoria: trabalhos de esforço e propriocepção designados pela Marcia Martinez, travessias em montanha orientadas por Eduardo Gomez, duros exercícios pliométricos ditados por Rodrigo Florencio, longas corridas acompanhadas pelo Gabriel Pagani e bastante alongamento auxiliado por Bruno Germano, Raphael Torres e Joana Salvaget. Obviamente, a melhora do condicionamento físico em todos do grupo era perceptível e, quase sempre acompanhada por algum tipo de lesão, como torsão de tornozelo, fascite plantar, dores no joelho e muitas bolhas nos pés. Por este motivo, faltando um mês para a prova, meu parceiro, Cristiano Amorim apresentou uma lesão na coluna durante os treinos preparatórios, e foi proibido pelo médico de correr. Imediatamente, pensamos no nome de Eduardo Gomez para completar a dupla, uma vez que este desafio tinha a cara dele e ele havia participado de boa parte do treinamento. Tivemos que insistir um pouco, mas o Dudu acabou aceitando o desafio, mesmo com o curto espaço de tempo que antecedia o Cruce.

Partimos para Argentina, e já de início enfrentamos uma maratona de vôos cancelados e/ou atrasados, táxis, ônibus até chegar a pequena cidade de San Martin de Los Andes que sediava a prova. Conhecendo novos amigos, reencontrando os velhos, pegamos os kits e tentamos relaxar um pouco na cidade no dia que antecedia a partida para o acampamento. Dormimos bem cedo e já estávamos de pé as 3 da manhã. De ônibus e vans, ainda no escuro, chegamos a fronteira Argentina/Chile, onde a aduana chilena reteve todos (ou quase todos) os tipo de sementes (amendoim e castanhas) e frutas secas que os participantes transportavam. Já no lado chileno, no Passo de Fronteira Hua Hum, tomamos um breve dejejum e nos aquecemos um pouco ao redor do fogo. Então, entramos na barca Mariela, atravessando o Lago Pirihueico com destino a Puerto Fuy (um pequeno povoado localizado entre montanhas, em meio à Selva Valdiviana Chilena) a 65 km de Panguipulli, primeira localidade importante do lado chileno.

Naquele primeiro dia de campo, uma atmosfera festiva tomava conta do local: música animada e alta, muitas fotos e poses, reuniões barulhentas, apresentações alegres, churrasqueira com abundancia de carnes e linguiças, diversos idiomas se misturando no ar, as pessoas iam se acomodando nas barracas, se conhecendo, curtindo na areia pedregosa, comendo, bebendo, acenando para os helicópteros que passavam em rasantes. Ao fundo, quando o céu se limpou, era possível observar sobre a paisagem montanhosa e distante, ao nosso redor, o topo achatado e coberto de gelo do vulcão Mocho-Choshuenco, um lembrete silencioso do desafio que enfrentaríamos na manhã seguinte. Todo mundo foi para a cama cedo. Na manhã seguinte, os concorrentes começaram a surgir a partir de orvalho que cobria as tendas antes do sol nascer. Já em torno de 8 horas, o sol tinha irrompido forte e quente em um céu claro, fomos todos caminhando pela estrada de terra com cerca de 2km, que levou ao início do prova.

Etapa 1: rumo ao Vulcão Mocho-Choshuenco (Sexta, 03/02)
A prova tinha início em uma ponte recém-construída logo acima de um belo rio de águas claras e limpas. Nesta etapa, segundo a organização, os corredores percorreriam a distância de 38,6km, sendo que este dia será o de maior desnível, onde corredores deveriam subir um trecho extenso, rumo ao Vulcão Mocho Choshuenco. Nós começamos a correr assim que encontramos terra firme, uma paisagem de floresta, com frio na sombra e muito calor no sol. A pista estava cheia de corredores e principalmente de subidas. Filipe e Fabrízio já nos ultrapassaram e só nos reencontramos após a prova, já no acampamento. A princípio, achei difícil definir um ritmo, mas combinamos correr em descidas e planos e caminhar rápido nas subidas, e aos poucos fomos encontrando nosso pace.
Com cerca de 16km a paisagem começou a mudar: menos vegetação, mais pedras e sol aberto. Um vento frio e constante também era percebido. Ao nosso redor, já observávamos mais três imponentes vulcões além do Choshuenco. Pouco tempo depois, estávamos em um cenário lunar, sem vegetação nenhuma, apenas pedras de diferentes tamanhos. Os helicópteros da prova nos acompanhavam do céu. Logo, visualizamos a neve e pequenos pontos pretos que, como formigas, subiam aquele algodão branco que cobria o vulcão. Pouco tempo depois, estávamos em uma escalada acentuada ao pico do vulcão, numa marcha lenta e escorregadia com o vento gritando e cortando qualquer parte do corpo que estivesse descoberta. Neste momento, os bastões de caminhada foram essenciais para manter certa firmeza durante a caminhada. Dudu estava em êxtase, feliz feito uma criança diante daquela paisagem de neve e, subia feito um cabrito aquela íngreme montanha. Alguns corredores já desciam em disparada e animavam os que ainda subiam. Finalmente, o topo, agora era contornar a cratera do vulcão e descer. Mas não seria tão fácil assim, o contorno parecia interminável, o vento gelado uivava chicoteando meu rosto. Minhas pernas simplesmente não me obedeciam, e o meu lento progresso era desestimulante. Em cada curva eu ​​esperava para ver o final do circuito e a tão esperada descida. Finalmente, na próxima curva, pura alegria, o trecho inclinado para baixo havia chegado. Voltamos a correr, tentando encorajar aqueles que ainda subiam. Mas a descida do vulcão ainda mostrou um lado traiçoeiro e escorregadio. Nossos pés afundavam na neve, encharcando nossos tênis. Era como esquiar sem esquis, e víamos pessoas caindo por todos os lados. Frear parecia impossível. Quando o trecho de neve terminava, um súbito abismo rochoso aparecia. Um componente da organização gritava desesperado tentando segurar os kamikazes que desciam em disparada. O cenário mudava de forma radical novamente, o morro feito de pedras soltas e instáveis nos obrigava a escolher com cautela o nosso caminho para baixo. Neste momento, nos reencontramos com nossos companheiros Roger e Ashbel, que mesmo largando quase uma hora depois, haviam nos alcançado. Aos poucos, a estrada de cascalho se transformou em trilhas largas e cheias de troncos enormes caídos através da floresta desmatada. Agora nós 4 correndo ladeira abaixo, íamos ultrapassando diversos corredores. Eu e Dudu descíamos a um pace de 4,1 lado a lado deixando muita gente pra trás. Nesse momento, uma empolgação nos contagiava. Eu estava realmente feliz e surpreso de como nós conseguíamos correr tão rápido depois de tudo que já havíamos passado. Durou pouco, de repente o Dudu tropeçou e se esborrachou no chão cheio de pedras. Parei imediatamente e quando tentei levantá-lo, ele me disse que estava com câimbra nas duas pernas. Alguns arranhões e continuamos correndo num ritmo bem mais lento sob a ameaça de novas câimbras. Encontramos um ponto de reabastecimento que nos ofereceu água ou Gatorade e nos informou que ainda estávamos a 5km da chegada o que não conferia com o Garmim do Dudu. Então percebemos que as medidas métricas argentinas, por mais incrível que pareça, são absolutamente diferentes do resto do mundo e os 38,6 haviam se transformado em mais de 40km. Chegamos exaustos. Pegamos ônibus de volta para o acampamento e descanso para o próximo dia.

Etapa 2: Margens do Lago Pirehueico (Sábado, 04/02)
A segunda etapa teve largada a cerca de 2km do mesmo acampamento, localizado às margens do Río Fuy. Teoricamente, este dia seria o mais duro, pois a distância total a ser percorrida era de 40,3km. Basicamente localizado na floresta da reserva chilena de Huilo-huilo, este trecho apesar de mais longo e ter maior subida acumulada, não possuía o percurso de neve que tanto dificultou a nossa vida.  A surpresa deste dia ocorreu no quilometro 40, assim que alcançamos às margens do Lago Pirehueico, um espelho de água de origem glacial. Quando acreditávamos que estivéssemos chegado ao final da prova, observamos os corredores a nossa frente andando em fila indiana, pela margem pedregosa com uma vegetação abundante, além de diversos troncos caídos, nos oferecendo uma sequência inesperada de difíceis obstáculos em intermináveis quilômetros extras. Comecei a pular e “passar por fora” acompanhado de perto pelo Dudu, e ultrapassando diversos competidores. Após ser bravamente xingado por uma argentina que se ofendeu com a minha postura em um trecho realmente perigoso, passamos por uma bandeira vermelha com um círculo branco no interior. Perguntei para o organizador que ali se encontrava se a prova havia terminado, e recebi um aceno positivo com a cabeça. Começamos a tirar fotos e caminhar em um trecho de “praia de pedra”, quando o Dudu me perguntou por que eu estava “pangando”. Respondi que a prova havia terminado e imediatamente levei um "esporro", caindo na real e ao mesmo tempo visualizando o ainda distante e grande arco azul inflável que marcava o final da prova. Voltei a correr então já com a musculatura da perna fadigada. Mais uma vez cruzamos a linha de chegada, e os iniciais 40,3km haviam se transformado em 45,34km. Felizes e suados, mergulhamos no lago aproveitando o sol que brilhava no céu. Mais a surpresa maior ainda estava por vir, ao caminhar em direção as barracas fui informado que a maioria das mochilas não havia chegado devido a um problema na barca de transporte. Após comer alguma coisa e confirmar que nossas mochilas realmente não estavam lá, ainda molhado e tremendo de frio, recortamos caixas de papelão e espalhamos pelo interior da barraca, na esperança de que nosso equipamento seria ainda transportado pelos caminhões contratados pela organização. As 10 da noite, saímos para verificar as mochilas e ficamos felizes ao encontrá-las no último caminhão de transporte daquele dia. Alguns competidores não receberam as mochilas e acabaram dormindo ao redor do fogo e tendo que contar com a solidariedade de outros corredores, que emprestavam roupas e agasalhos, demonstrando o verdadeiro espírito desta prova.


Etapa 3: A caminho do Lago Nonthué (Domingo,05/02)
A etapa mais fácil da prova, o percurso de pouco desnível e com uma quilometragem menor (inicialmente com 26,4 quilômetros). Logo na largada, ao som de Michel Teló, fomos informados que correríamos 22km, talvez uma compensação dos erros anteriores. O trecho final foi rápido e praticamente todo corrido com poucas subidas de caminhadas ligeiras, sendo brevemente interrompido pela aduana na fronteira entre Chile e Argentina. Terminamos novamente em uma praia de pedras com uma passagem estreita que comunicava o Lago Nonthué com o Lago Lacar. Em um clima de comemoração total, os atletas atravessaram um lago em lanchas por cerca de 800 metros e chegaram ao Camping Nonthué, na Argentina, onde ao som de músicas atravessamos finalmente o grande arco azul inflável que marcava o último dia de prova. Comemoramos todos felizes pela conquista, André Caúla, Eduardo Gomez, Roger Cardoso, Ashbel Almeida, Filipe Meireles e Fabrízio Rubinstein, além dos novos amigos que lá fizemos.

Conclusão: Uma prova bastante dura em um cenário de singular beleza que exige do atleta, profissional ou amador, muita dedicação e treino. Além do desafio físico e mental, o competidor tem que se adaptar as alterações climáticas que oscilam bastante nesta região patagônica, bem como se adequar a vida simples em acampamento por 3 dias. Uma prova sensacional, principalmente quando acompanhada de bons amigos!

André Caúla




Nenhum comentário: