sábado, 19 de outubro de 2013

texto escrito por Andre Caula


A prova argentina La Mision ocorre há 9 anos na Cordilheira dos Andes, na Patagônia Norte da Argentina, e é famosa pelas suas características peculiares. Muito mais do que uma competição, a essência desta corrida é mais semelhante a uma peregrinação, onde cada atleta deve gerenciar suas forças, escolher quando e onde descansar, apreciar a paisagem e enfrentar os caprichos do clima, porém sempre com o objetivo de concluir o percurso dentro do período de tempo limite. A corrida tem sua distância original de 160km, com cerca de 8.500 metros de desnível percorridos em quatro dias e três noites. E pela primeira vez, a prova chegou no Brasil em suas versões mais curtas, o Short e o Half Mision, com 40 e 80km respectivamente. O local escolhido não poderia ser mais perfeito, a Serra Fina, um dos maiores desníveis topográficos do território brasileiro, passando pela quinta montanha mais alta do Brasil, a Pedra da Mina, com 2.798 metros de altitude.



Com este espírito, nosso grupo, formado por Eu, Dudu, Roger e Ashbel, partiu para a cidade de Passa Quatro (MG). Chegamos e fomos direto pegar nosso kit, composto de camisa e numeral, o essencial, simples assim. A Salomon, patrocinadora do evento, não se deu ao trabalho nem de fabricar a camisa, nem mesmo de oferecer ao vencedor algum material, como um par de tênis por exemplo. Se limitou a oferecer descontos na vendinha montada no local. Mais tarde comemos uma pizza na cidade vizinha de São Lourenço e fomos descansar.



No dia seguinte, acordamos bem cedo e seguimos para a praça de Passa Quatro. Depois de nos deixar lá, Dudu que não iria participar da prova seguiu para o Paiolinho e para a Pedra da Mina, onde acamparia até o dia seguinte. Ainda na praça (900m), ouvíamos as palavras do organizador Sidney Togumi sobre a importância da auto-suficiência, a escassez de água deste percurso e que não importava se você chegasse em primeiro ou em último, o que importa em última análise, era concluir o curso, pois "chegar é ganhar”. A informação de que o tempo para conclusão da prova tinha passado de 24 para 26 horas, ao invés de me acalmar, me assustava. 



A largada ocorreu pontualmente as 11 horas, e todos os atletas do Short e do Half seguiam juntos acompanhando o "carro madrinha" durante o trecho urbano do percurso. Logo após cruzar a rodovia e chegar na estrada de terra batida, tive que parar para tirar a segunda pele que vestia, pois o calor já era intenso. 


Com uma mochila muito mais pesada do que o de costume, cheia de comida, água e itens obrigatórios como casaco, capacete, headlamp e kit de primeiros socorros, conseguimos correr lentamente até passar pelo Refúgio Serra Fina e alcançar a Toca do Lobo (1.570m) após cerca de 14km. Assim como a maioria dos atletas, nos alimentamos e reabastecemos nossos reservatórios com água cristalina do riacho que cruzamos. 


Continuamos por uma trilha íngreme, passando pelo morro do Cruzeiro (1.783m) e Quartzito (2.020m), e seguimos caminhando sobre a fenomenal crista que liga este último ao Alto do Capim Amarelo (2.491m). Apesar da subida impiedosa, os atletas estavam animados e gritavam palavras de incentivo. E foi neste clima festivo que conheci a Sra. Tomiko Eguchi de 63 anos e uma energia de garota, que vibrava com o visual esplendoroso da região. 




No Capim Amarelo, nos separamos dos Camisas Vermelhas do Short Mision que seguiam em direção ao Tijuco Preto e de volta a Passa Quatro. Uma breve parada para alimentação e admirar aquela vista indescritível. Os staffs faziam a checagem do material obrigatório para seguir a viagem. Entre os Picos, nós descíamos bem para então, voltar a subir ainda mais alto. 


Roger e Ashbel, seguiam bem a minha frente e a partir daí, os atletas ficavam mais espaçados e o desafio tomou um aspecto bem mais solitário. Tinha me preparado mentalmente para viver aquela situação e estava bastante confortável. Tentava avançar o máximo possível, tentando aproveitar a luz do dia. Ainda neste percurso, encontrei os novos amigos Giuliano Bertazzolo e Daniel Mesquita, e com um papo formidável e descontraído, alcançamos juntos, a área de acampamento conhecida como Maracanã. Me sentindo muito cansado, infelizmente não consegui acampanhá-los por mais tempo e voltei a ficar só.


Em um trecho de floresta, reencontrei o Roger e o Ashbel, me aguardando em plena meditação. Seguimos juntos e, com o dia ainda claro, conseguimos atingir o Melano (2.496m). Então, o sol começou a se por e acendemos nossas lanternas. Ficamos surpresos, quando olhando adiante com a headlamp na cabeça, avistamos aqueles vários pontos brilhantes que se confundiam com estrelas e marcavam nosso caminho. Com a altitude e o anoitecer, também chegaram o frio e o vento O percurso era agora praticamente sob pedras e alguns trechos de lama escorregadia. Antes de alcançar o ponto mais alto da prova, atravessamos um pequeno riacho, e reabastecemos mais uma vez nossos reservatórios. Então, após algum tempo de subida técnica, finalmente chegamos a Pedra da Mina (2.798m), cerca de 30km da largada. Um vento impiedoso nos castigava e, provavelmente, levava a temperatura a valores muito baixos ou negativos. Com uma falsa sensação de que o pior já tinha passado, começamos a descer. Logo reencontramos o Dudu acampado no alto da montanha. Descansamos um pouco e nos alimentamos. Interromper a atividade física, mesmo que brevemente, me fez congelar. neste ponto, o Roger, sentindo os efeitos de uma gripe que ainda não tinha superado, resolver abandonar a prova. As vezes, a sabedoria está em escutar nosso corpo e preservar nossa integridade. Eu e Ashbel, nos despedimos de nossos parceiros e seguimos viagem.


Uma descida escura e infinita nos aguardava. Segurando firmemente o capim de anta, chutando as pedras, torcendo o pé, caindo no chão, nós seguimos lentamente junto com Daniel e Giuliano. Cruzamos novamente com a Sra. Tomiko, agora mais melancólica. Aos poucos o terreno foi melhorando, e voltamos a correr, nos afastando do grupo. Depois de algum tempo, atingimos o Paiolinho (1.506m) no km 38. Lá encontramos, alguns corredores que abandonaram a prova, entre eles, nosso amigo Mauro que tinha passado mal. Tomamos uma sopa quente e seguimos por uma estrada de terra. Com a monotonia da visão limitada do faixo de luz a minha frente, dava breves cochilos, porém continuava correndo, como se meu corpo e minha mente estivessem desconectados.


Assim alcançamos o ponto do IBAMA, no km 50. Diversos atletas, jogados pelo chão, descansavam naquele cenário de batalha. Paramos para abastecer e comer. Resolvemos dormir por 30 minutos. Levantamos e entramos na floresta sombria. Saímos da floresta e enfrentamos uma longa e interminável subida na estrada de terra, onde presenciamos um lindo amanhecer. No fim da estrada de terra, outro PC e início de trilha. Já exautos, não acreditávamos naquela subida, mata acima. Ashbel resolveu desistir e retornou para o último PC. Continuei sozinho, ainda determinado. Em pouco tempo, minha convicção havia se disipado. A subida era cada vez pior. Me lamentava. Não conseguia ingerir mais nada sólido e os poucos suplementos em pó ou em gel que ainda possuía, já não eram suficientes. Um enjôo, uma exaustão física e mental, e uma fome inquietante me consumiam. Derrotado, me deitei sozinho no mato, pensando o que eu estava fazendo ali. Escuto um som de gente se aproximando, olho para baixo e reconheço aquele capacete azul surrado, Ashbel. Como não havia ponto de resgate, no último PC, ele teria que retornar ao PC IBAMA, quase 10 km voltando. Desistiu de desistir! Pronto, não havia como retroceder. Seguimos juntos, reclamando e xingando, até chegar no topo do ameaçador Tijuco Preto (2.350m). Ufa, finalmente, descida. Minha felicidade não durou muito. A descida era uma espécie de tobogã de lama. Segurando as cordas colocadas pela organização, seguimos morro abaixo. Chegamos ao último PC antes da chegada, o Refúgio Serra Fina, com cerca de 22/23 horas de prova. A ansiedade e a vontade de terminar aquele sofrimento, fizeram o Ashbel partir em velocidade os 12 últimos quilômetros até a praça. Eu mantive a calma, me alimentei e me hidratei, e continue combinando momentos de corrida com caminhada até concluir a prova. Pronto, "Missão Cumprida", dizia a medalha! Um dia de Insanidade, passava pela minha cabeça.




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