sexta-feira, 12 de agosto de 2011

LE ETAPE II por Erik Cruz

Letape II – 2011 – 210,5km – Issoire-Saint Flour

Esperei uns dias para escrever minhas impressões sobre o Letape 2011, Issoire- Saint Flour, que um jornal aqui da França classificou como “Um dia Dantesco”. A emoção que este desafio me trouxe precisava ser amenizada um pouco pelo tempo, para que minha narrativa não virasse um relato destemperado.

A véspera da prova foi marcada pela escolha infeliz de uma longa viagem entre as cidades de Lourdes e Clermont-Ferrand, de aproximadamente 650km.

Nosso grupo passou praticamente um dia inteiro dentro de uma van muito desconfortável, que certamente comprometeu o desempenho na prova do dia seguinte, tanto que levou alguns a decidirem por não ir para a largada. Mas eu me dediquei muito a este desafio e nem pensava nesta hipótese.

 
O início do dia 17 foi o prenúncio da dura jornada que teríamos que enfrentar no Maciço Central francês. A chuva, que começou por volta das duas da manhã, já encharcava as poucas roupas que vestíamos e colocada à prova as blusas impermeáveis (pelo menos assim estava escrito nas etiquetas...) que compramos a preço de ouro na feira montada no local da entrega dos kits, na véspera.

Enquanto procurava minha baia de largada, junto com os outros ciclistas do grupo, eu já começava a me questionar se deveria mesmo ir em frente, pois ali mesmo o frio, aliado à chuva e ao vento constantes, já parecia invencível.

Mas foram muitos meses de preparação, muito tempo sacrificado, muitas horas que deixei de estar com meu filho e minha mulher, e vencer o desafio deixou de ser apenas uma competição. Passou a ser uma questão de honra.

Antes de largar eu já me penitenciava por não ter colocado mais roupas, por ter deixado o manguito na van, enfim, o clima assombroso já colocara os nervos à prova, e eu tremia sem parar.

A quantidade de ciclistas na largada, apesar da desistência de muitos, tinha o efeito de abrandar a tensão, afinal, eram tantos ali que eu concluía ser apenas mais um em milhares e, portanto, a situação não era tão alarmante assim.
 
Iniciei a jornada ao lado de alguns colegas do grupo do Cléber Anderson (São Paulo), mas em poucos minutos não via mais nenhum conhecido e procurei me agrupar em um grande pelotão, o que de certa forma reduzia um pouco (infelizmente não o suficiente) o incômodo que a tal combinação chuva-vento-frio provocava.

Os 20/30 quilômetros foram até tranqüilos, dentro do possível, até que, após um subida média, atingimos uma região rural de estrada bem aberta, o Maciço Central, onde o vento passou a castigar a todos e sensação térmica era insuportável. Os primeiros colocados, disseram, enfrentaram até chuva de granizo. Já na primeira parada, por volta do km 60, o cenário era de desastre: muitos ciclistas desistentes, muita gente tremendo de frio e buscando alojamento em casas, estábulos ou qualquer outro lugar que pudesse aquecer o corpo. Decidi não parar ali nem para pegar água, porque se eu o fizesse talvez não continuasse a pedalar. Parei num canto, encontrei alguns pedaços de papel e coloquei o que pude entre o corta-vento e a blusa de ciclismo, em uma tentativa vã de amenizar o frio e tentar parar de tremer. E fui em frente...
 
Depois de passar pelo maior desconforto térmico da minha vida, alcancei o Col de Peyrol, a 1400 metros , topo da primeira grande subida da prova. Lá em cima, sob uma chuva fria e gelada, forte névoa e um frio literalmente congelante, haviai um pequeno bar, típico de estações de esqui, onde outros vários ciclistas recebiam atendimento médico por conta da hipotermia. Novamente a cena era de dar medo, porque os enfermos tremiam e estavam enrolados naqueles cobertores térmicos, uma espécie de papel laminado que ajuda o corpo a retornar à temperatura normal. Neste ponto a vontade de parar ficou ainda mais forte, mas não o suficiente para vencer a determinação que as horas de treinamento me proporcionaram.

E segui em frente, realizando a descida mais difícil e lenta que já havia experimentado, pois o frio não me permitia soltar os freios como de costume.

A assim foi praticamente todo o percurso, rezando para não chegar as descidas (nunca pensei que isso fosse acontecer!) e torcendo por uma subida bem íngreme que me permitisse fazer bastante força e com isso espantar um pouco o frio. Na primeira parada que fiz, acho que por volta do km 100, a visão dos ciclistas congelados, procurando algo para comer, era de assustar. As cabanas montadas estavam lotadas, os muitos voluntários tentavam ajudar a todos da melhor maneira possível diante daquela situação dramática que se instaurou na prova. Consegui três copos de café. Bebi dois e o terceiro joguei dentro das sapatilhas, para tentar “derreter” os dedos dos pés.
 
Os voluntários e expectadores, aliás, merecem as mais honrosas homenagens, pois também estavam ali, naquele clima tão adverso, simplesmente para nos ajudar e dar apoio moral com os gritos de allez !, allez !, bravo !, bravo ! Incrível e emocionante a presença de pessoas de todas as idades. Muitas vezes, em lugares ermos, havia lá um(a) solitário(a) expectador(a) a gritar para nós ao passarmos, e realmente isso nos dava força para pedalar mais, subir mais, suportar mais um pouco o frio.
 
Os 50km finais foram mais amenos que os anteriores (o que não significa dizer que foram cômodos e livres de chuva, vento e frio) e as descidas predominaram. Apesar de não ter condições de descer em alta velocidade, em razão do frio e do piso molhado, as descidas não foram tão difíceis quanto as anteriores, e comecei a acreditar que iria mesmo completar aquele a prova.
 
Procurei manter a concentração, controlar a câimbra nos músculos do abdômen (provocadas pelas horas de contração de frio) e consegui impor uma velocidade média até razoável.
 
O último grande desafio da prova foi a subida nos arredores do Chateau d`Alleuze (por volta do km190), que na altimetria dizia ser de 2km mas na realidade eram mais de 4.
 
Dede o início a corrida deixou de ser uma competição de ciclismo e passou a ser uma prova de resistência ao frio, ao desconforto provocado pela chuva incessante e pelas dificuldades e riscos que o vento trazia. As pernas não foram tão exigidas, porque as condições climáticas não permitiram o desempenho atlético programado e esperado.
 
Para quem é atleta, profissional ou amador, a luta entre mente e corpo não é nenhuma novidade. A primeira quer continuar, e o segundo pede desesperadamente para parar. E foi assim durante os 210,5km de prova.
 
Nos dois kms finais, que eram de subida (que novidade !) mantive minha concentração porque a fadiga mental e física eram tão fortes que qualquer mudança de posição na bike, qualquer pedalada errada, seria suficiente para me impedir de chegar, ou pelo menos de chegar pedalando.
 
Cruzei a linha de chegada depois de 9 horas e meia de muita resistência, esforço, dor e desconforto. Só não fui às lágrimas porque a vontade e a concentração absoluta nem me deram tempo para isso.
 
Depois da conquista, fiquei tentando compreender a razão daquilo tudo. Por que eu havia colocado em risco muita saúde e minha vida. Aos olhos daqueles que não se envolvem tanto com o esporte, ou que não impõem desafios dessa magnitude, uma prova como essa certamente assume ares de loucura, de total absurdo, de insanidade mesmo.

Mas para nós, atletas amadores, estes desafios são a fonte de nossa energia, a razão que nos leva a sair de casa para treinar sob as mais adversas condições, em momentos que a maioria das pessoas prefeririam estar sentados em suas casas, assistindo a um programa de TV ou a um filme qualquer.

E nós vivemos é disso mesmo, de vencer desafios. Apesar de ter levado bem mais tempo do que esperava, me dei por satisfeito e pendurei orgulhoso a medalha no peito, e o tempo de prova (que quase sempre é o nosso objetivo maior) desta vez não foi tão importante. Certamente que, em condições climáticas normais (ou ao menos razoáveis) todos nós teríamos feito a prova em muito menos tempo, duas horas a menos, talvez, mas o que fez desta prova um desafio singular foi justamente a batalha entre o corpo e a mente, e foi uma lição que vou levar para o resto da vida.

Na manhã do dia seguinte o Dr. Marcos, ciclista que havia cumprido o desafio do Letape 1, bateu na minha porta e me disse: ‘Parabéns cara, fiquei sabendo o quão difícil foi a prova ! Você fez isso pelo seu filho que ficou lá no Brasil, não foi ?” De fato este foi mesmo um pensamento que me acompanhou durante a prova: qual história eu teria para contar a ele no futuro ? Contar as razões (muito justas, por sinal) de uma desistência ou contar sobre a teimosia e o esforço de fazer a cabeça dominar o corpo que pedia para parar. Mais uma vez (e não foram poucas) contive o choro e agradeci a gentileza do colega.

De fato, nos momentos mais difíceis foi nele que pensei, e na minha esposa, que teve muita paciência para aturar as minhas saídas para treinar enquanto cuidava do nosso neném.

Contei também com grandes amigos e profissionais que me ajudaram a preparar para este desafio, a quem externo aqui meus mais sinceros agradecimentos: Os professores Marcos Hallack (JF), cuja frase repetida várias vezes foi marcante durante o percurso (“acredita, Erik, acredita!”) e Ricardo Leite (também de JF), grande parceiro de treinos, incentivador e mestre.

Ao professor e mestre Walter Tuche, um especial agradecimento. Os poucos meses de treinamento com ele me deram a certeza de estar bem preparado para o desafio. Não sei como ele consegue dar atenção a todos os seus alunos, mas o fato é que ele faz isso com muito profissionalismo e competência. Valeu, Walter. O seu abraço, recebido na chegada da prova, quase me fez chorar.

Ao Rafael Brasília (nutricionista - RJ) também agradeço penhorado a atenção e paciência. Suas orientações são dicas de bem-viver que irei seguir para sempre.

Aos meus parceiros de pedaladas, em especial ao Marcelo Dornellas e ao Wagner Soares (grandes companheiros dos rolés de sábado e incentivadores), minhas gratidão e amizade. Divido com vocês a minha satisfação.

Além da conquista pessoal, foi por tudo isso que consegui resistir a tudo e cruzar a linha de chegada: o apoio da família e de verdadeiros amigos.

Àqueles que porventura pararam ou foram forçados a sair do percurso, tenham a certeza de que o simples fato de terem largado naquele dia terrível já é prova de bravura e perseverança. Só quem esteve lá tem a exata dimensão das dificuldades enfrentadas. A lição foi a mesma para todos nós.

Agradeço a todos vocês pela amizade sincera e pelo carinho. O que pode parecer absurdo e até mesmo idiotice para alguns, é para nós uma forma de agradecer a Deus pela saúde que temos e pelas possibilidades quase infinitas que a vida nos apresenta, e que basta acreditarmos que somos capazes.

Abraços a todos.

Erik

Um comentário:

Lawrence disse...

Parabéns Erik. Muito bacana o seu relato.se tudo der certo estarei lá em 2012. Abs. E nos encontramos nas estradas de Minas. Lawrence